sexta-feira, 22 de junho de 2007

homem coloca a filha no microondas e a mulher culpa o diabo por isso

apesar de serem parecidos em diversos aspectos, o jornalismo e antropologia guardam algumas diferenças. eu não posso falar muito pelo jornalismo, mas acho que vocês devem ter em meta algo como "o fato" - que precisa ser descrito, com o máximo de “exatidão”. mas "fato" é só uma palavra. a descrição dele, a matéria, a reportagem, é uma descrição de algo que ocorreu, sob o qual o jornalista fará recortes principalmente a partir de uma série de prioridades editoriais. e a desrição já trás em si muito do jornalista.

observe a chamada da folha de são paulo: "homem coloca a filha no microondas e a mulher culpa o diabo por isso". nota que as maneiras de contar o fato são na verdade recriações, uma abstração sobre o que de fato ocorreu, e que só pode ter tido vida no momento de sua ocorrência. embora o jornalista queira trazer as informações de uma maneira imparcial, ele está criando na verdade ao espectador a ilusão que ele está vivenciando a realidade. mas não está.

percebemos logo de cara que o jornalista, e o leitor-modelo desse veículo de comunicação, não acreditaria que o diabo (que deve estar agora inocentemente sentando em uma confortável poltrona vermelha no inferno se lamentando “o que que eu fiz dessa vez?!”) foi o verdadeiro culpado pelo crime - senão, a manchete não teria tal acusação. por outro lado, uma sociedade com crenças acentuadas em “forças do mal” estaria convencida de que um homem não seria capaz algo do tipo, de forma que se tratava realmente de uma ação de lúcifer - ou seja lá como eles chamam o cara-, e a chamada nos revelaria outro "fato".

nesse sentido, se está criando, tecendo, construindo algo. quando tu perguntas pra uma pessoa como foi a noite, ela pode te dizer que foi legal, que fulano e beltrano estavam lá, e que ela passou três horas e meia tentando sair do banheiro, mas que não encontrou a porta de saida porque estava absolutamente bêbada. e tu podes até dizer que entendeu. mas o que foi vivido, como nos mostra clarice lispesctor, não é relatável, não é vivível. agora acredito, e acho que esse é o ponto chave da questão toda, é que alguns dos elementos do "evento" podem ser transmitidos ao espectador de maneira bastante precisa (bin laden derubou dois prédios, e não três casas). talvez por isso tu tenhas discordado da afirmação de que todo escrito é uma forma de ficção - e eu concordo contigo apenas nesse sentido.

no sentido jornalístico dizer que tudo é ficção é simplesmente sepultar toda credibilidade da imprensa. imagina um jornalista dizendo ao editor-chefe que não foi fazer a matéria porque "criou o que aconteceu". se ele não for sobrinho do dono da empresa, vai encontrar alguns problemas depois pra pagar suas contas. agora na antropologia a coisa toda segue uma outra orientação. eles também tabalham com "fatos" no sentido jornalístico, mas se o projeto fica nisso, ele torna-se um trabalho jornalístico - então pra que precisaríamos de antropólogos? a diferença é que o objetivo não é descrever o fato, mas compreender porque os caras estão agindo dessa ou daquela maneira. e aqui, a antropologia é uma ficção. alguém vai lá, observa, participa, e volta com um conjunto de textos de baixo do braço. ficções.
scrap-celeuma à lilian witfibe.
s/d

3 comentários:

Anônimo disse...

olha o que eu achei:

"o jornalista que tem o culto do fato é profissionalmente um fracassado. o fato em si mesmo vale pouco ou nada. o que lhe dá autoridade é o acréscimo da imaginação"

(nelson rodrigues)

Malcolm Robinson disse...

oi, julia! a postagem está de acordo com o nelson rodrigues. eu te amo. entendeu?

Anônimo disse...

e eu amo as tuas ficções.