sexta-feira, 17 de agosto de 2007

plantadores de tomate

a mulher de césar não deve apenas ser honesta, mas parecer honesta.
provérbio espanhol

eu também acho o veríssimo genial. algumas pessoas da chamada alta literatura acreditam que ele produz uma literatura menor, justamente porque elas usam a arte não tanto pelo exercício de fruição a que ela de fato se destina, mas pelo prazer de usá-la como um instrumento sádico de delimitação de fronteiras culturais. é preciso deixar claro pra todos que eles nasceram em paris e não em teresina. ou, indo direto ao assunto, como é algo que se tornou popular, não pode ser bom.

pierre bourdieu, num texto que se não estou enganado chama-se “o processo de autonomização da obra de arte”, explica isso de uma forma bastante clara. quando a burguesia assumiu o controle das forças produtivas no século XIX, precisava de um conjunto de artefatos que a diferenciasse das classes populares - de onde, inclusive, ela se originou. os burgueses não eram aristocratas, mas gente do povo, pequenos comerciantes que com o tempo se tornaram bem sucedidos economicamente. sob essas circunstâncias criou-se o ambiente adequado para constituição do processo de profissionalização e independência dos artistas, pois estes, tendo que atender a uma demanda absurda de pinturas, esculturas e desenhos, pelos burgueses, passaram a viver exclusivamente da arte que produziam – e não de um emprego no funcionalismo público, por exemplo. aqui se consolida finalmente as condições ideais para a autonomia da arte - e, por extensão, a criação das muralhas culturais que separariam o povo do próprio povo.

se pensarmos bem, até hoje é assim, e, por exemplo, se um arquiteto ou um artista plástico quer ser bem sucedido, ele tem que participar do circuito da “high society” com suas máscaras de sorrisos, exatamente como as balaclavas protegiam os soldados ingleses do frio na guerra da criméia. mas mesmo algumas pessoas da chamada “contracultura” ou da “roda intelectual-artístico-boêmia” (pra usar um palavrão do gilberto velho), fazem a mesma coisa. é incrível como eles têm horror a consumir o mesmo tipo de bem que uma pessoa mais simples (apenas no sentido burguês da palavra) consome. quer dizer, passam o tempo inteiro falando aquela besteirada sobre a burguesia, e no final das contas, fazem a mesma coisa que os burgueses. eles têm horror não a obra em si, mas ao fato dela está sendo consumida pelo povão. com machado de assis: "a onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal".

o contraponto desse estado de coisas é que em nome da virtude e dos bons costumes a gente tem que passar o dia inteiro ouvindo todo tipo de lixo musical, enquanto estamos ocupados na cozinha de um restaurante fino lavando as louças, os talheres e as panelas da democracia. enquanto isso, o preço da cesta básica não para de aumentar porque os plantadores de tomate continuam fugindo pra são paulo com um violão em baixo do braço.

adaptação de e-mail resposta à marlene dietrich.
s/d

17 comentários:

Anônimo disse...

interessante. mesmo que no último parágrafo o seu discurso seja o mesmo dos membros da roda intelectual-artístico-boêmia - formada a partir da ascensão da burguesia - que você critica ao longo do texto.

Malcolm Robinson disse...

muito bem observado. o detalhe é que eu tb sou filho da burguesia, e, como tal, não posso fugir totalmente das amarras culturais a que me foram destinadas. do ponto de vista filosófico, não há praticamente nada que possa ser feito em relação as valorações estéticas - o que nos leva forçadamente ao terreno da política (em focault, por exemplo) que foi a maneira que encontramos de nos livrarmos do niilismo ou da famosa "crise dos paradigimas". em suma, as argumentações em torno do valor que se dá aos objetos artísticos giram em torno do poder de convencimento do próprio argumento e não numa suposta relação objetiva deste em relação ao objeto em si. o argumento torna-se convicente ou não - e, atualmente, este me parece o estado das coisas.

Anônimo disse...

sim. não há como fugir das amarras culturais. mas com relação ao sentido - ou coerência - do discurso do texto, parece-me que há uma certa ambiguidade. ao longo do texto tem-se a impressão de que você critica a postura da burguesia com relação aos produtos culturais massivos e/ou populares. explica - embasadamente, por sinal - esse fenômeno historicamente. porém, no final, cria-se uma certa confusão, já que parece que você está fazendo o que acabou de criticar. concordo que as valorações estéticas estão no campo do discurso e não de uma suposta verdade objetiva universal (absurdo que gente como foucault ajudou a solapar). a questão é que no final do seu texto a gente não consegue saber se você corrobora ou discorda da postura que logo à pouco você acabou, diga-se de passagem, de muito bem destruir.

Anônimo disse...

ah, e com relação ao valor que se dá aos objetos artísticos, talvez seja uma questão mais de que lugar (de quem) vem o argumento do que do poder de convecimento do argumento em si. parece que, voltando ao bourdieu, o que mais importa é o capital cultural e simbólico do pronunciador do argumento do que do conteúdo deste.

Malcolm Robinson disse...

uma coisa de cada vez. em relação a primeira contestação, pensei que já havia tateado a questão "cultura/indivíduo" (é claro que alguns são mais xiitas como outros - dê apenas uma olhada em alguns textos do adorno em relação ao jazz). não sei exatamente o que vc deixou de perceber. não podemos - e isso é ponto pacífico - separar o criador de sua obra, do local de onde ele escreve, de quem está patrocinando as suas pesquisas, enfim, das circunstâncias que antes passavam despercebidos e que em certa medida foram um dos elementos que propulsionaram a "crise dos paradigmas. de todo modo, as observações foram todas bastante pertinentes, e desde já agradeço.

Malcolm Robinson disse...

esqueci de um detalhe: faço exatamente o que critico. eu já disse em outro lugar que tb não me poupo.

Malcolm Robinson disse...

em relação ao segundo argumento, discordo completamente. existem autores como clifford geertz que não dispunham de capital cultural suficiente para a grande revolução epistemológica que ele possibilitou. antes da "interpretação das culturas", ele era apenas um antropólogo como qualquer outro. depois do lançamento da obra, é que o autor ganhou a notoriedade que o fez torna-se um dos maiores antropólogos da história. aqui, o capital cultural foi conquistado apenas após o do livro. aguns textos são tão poderosos, que por si só rompem as fronteiras criadas por aqueles que dizem o que deve ou que nao deve ser levado em conta.

Malcolm Robinson disse...

corrigindo: aqui, o capital cultural foi conquistado apenas após o LANÇAMENTO do livro.

Malcolm Robinson disse...

último detalhe: é óbvio que depois da obra que o consagrou, ele podia escrever sobre qualquer coisa. eu mesmo compraria dele livros sobre pescaria, culinária ou a importância do "touchdown" no último campeonato dos estados unidos da américa.

Anônimo disse...

a revolução epistemológica a qual geertz está inserido não começou em 1973 com o lançamento de "interpretação das culturas". uma revolução não se faz da noite pro dia. 1922 foi o ano do salão de arte moderna, mas o movimento modernista brasileiro não começou aí. geertz está inserido num campo intelectual que a partir da década de sessenta - mais intensamente - iniciou o movimento apelidado por alguns rotulistas como pós-moderno. geertz foi um divisor de águas na antropologia, porém, houve atores desse movimento tão importante quanto ele em outras áras, como a filosifa e a linguística.

Anônimo disse...

continuando... uma andorinha só não faz verão. o capital cultural não foi conquistado apenas após o lançamento do livro. o capital simbólico - que é o capital cultural reconhecido - foi conquistado após os pares do campo de geertz o reconhecerem, o consagrarem. o mercado de bens simbólicos denega o econômico, deixando implícita a troca. é uma relação de forças, de luta simbólica. e os pares de um campo podem reconhecer um objeto cultural mal fundamentado (geertz não é o exemplo aqui) assim como podem desprezar um pertinente. os motivos são variados e dependem de análise caso à caso.

Anônimo disse...

entendi a contradição proposital do texto provacada pelas pressões culturais sobre indivíduo. só lembrando que todo o indivíduo as sofre, o que não deixa que muitas pessoas claramente tomem partido contra os discursos que as formaram e influenciaram.

Anônimo disse...

mas muito bom achar coisas do tipo no campo árido da internet. parabéns.

Malcolm Robinson disse...

grato pelas observações. mas deixo aqui considerações finais pra tentar deixar as coisas mais claras:

1) como disse acima: “o detalhe é que eu tb sou filho da burguesia, e, como tal, não posso fugir TOTALMENTE das amarras culturais a que me foram destinadas”(grifo meu). especialmente em cidades urbano-industriais há maior liberdade dos indivíduos no que se refere a transformação de determinados aspectos de sua cultura – daqui o conceito de dinâmica cultural consagrado por victor turner. nesse sentido, como afirmado em “plantadores de tomate”, consumo um produto que passou a ser rechaçado por alguns intelectuais APENAS pelo fato dele está sendo consumido pelo povão. eles preferem tentar nos convencer que são bisnetos de goethe. eu não penso nisso - alguns são mais xiitas que outros. o fato é que ninguém vai me convencer que a comprar o último disco da carla perez.

2) discordo absolutamente do argumento de que a revolução de geertz teria se iniciado antes de 1973. embora, é claro, reconheça que um conjunto de fatores históricos o levaram à isso – ele mesmo admite ser discípulo de wittgestein -, o lançamento da obra é reconhecido não como o ponto de partida da chamada “antroplogia pós-moderna”, mas da revitalização da chamada “antropologia simbólica” ou mesmo do conceito de cultura – uma revolução que talvez tenha só tenha precedentes na obra de claude lévi-strauss. de todo modo, não há dúvidas que nele se inicia uma nova forma de se fazer antropologia – um legítimo ponto de partida. os chamados pós-modernos (estou sempre falando de antropologia), só surgiram no início dos anos 80, criticando inclusive muitos pontos da obra do próprio geertz – embora é claro a matriz paradigmática seja a mesma. nesse sentido, podemos dizer que existe uma antropologia antes de geertz e uma antropologia depois de geertz. não sei de quais fontes vc encontrou a informação de que na década de 60 já estaria se formando dentro da antropologia elementos pós-modernos. posso afirmar com segurança que isso não corresponde aos fatos. o próprio geertz, antes da guinada hermenêutica era um funcionalista convicto. pra entender um pouco mais sobre do surgimento da antropologia pós-moderna sugiro a leitura de duas obras fundamentais: a primeira delas é “a experiência etnográfica” de james clifford, especialmente o capítulo “sobre a autoridade etnográfica”, no qual o autor faz um apanhado histórico dos principais paradigmas que se consagraram na antropologia ao longo do século XX. pra entender como essas coisas funcionam na prática: “antrhopology as cultural critique” (por incrível que pareça ainda não editado no brasil), de george marcus e michael fischer.

é isso. agradeço as pertinentes provocações e as referências elogiosas. seja sempre bem-vindo.

Anônimo disse...

falei que na década de 60 surgiram trabalhos que promoveram alterações epistemológicas que podem ser inseridas no âmbito do pós-moderno. não falei especificamente da antropologia. falo em várias áreas científicas. a epistemologia - como o estudo das dificuldades sentidas pelo espírito na sua tentativa de conhecer a realidade externa - permeia todas as áreas científicas e a tal virada do pensamento pós-moderno pode ser verificada em várias delas, principalmente nas humanidades. geertz não era pós-moderno em "interpretações das culturas", mas cimentou de vez as bases do relativismo, apesar de auto intitular-se não como tal, mas sim como um anti-anti-relativista, em artigo no American Anthropologist, em 1984. talvez uma tentativa de avaliar o uso radical de seu pensamento feito por alguns pesquisadores posteriormente.

Anônimo disse...

não li as obras de clifford e marcus, mas, sobre o surgimento da antropologia pós-moderna, achei interessante o trabalho de gellner - pós-modernismo, razão e religião - apesar dele criticar veementemente a postura relativista e pós-moderna. critica todos, geertz, clifford, marcus, rabinow, parsons... não que concorde, mas a crítica não é acéfala e muito bem escrita, de forma finamente engraçada, como todo bom atropólogo sabe fazer. bom, presumo que indicar esse livro é como fazer sermão pra padre, mas realmente essa celeuma me remeteu ao livro.

Malcolm Robinson disse...

1) bem, se eu entendi direito, vc escreveu acima: “a revolução epistemológica a qual geertz está inserido não começou em 1973 com o lançamento de interpretação das culturas", e logo após, em relação a esta revolução: “não falei especificamente da antropologia”. eu não posso falar em relação a outras discipinas, mas as referências teóricas que o levaram a ruptura dos canônes clássicos do pensamento antropológico não estão sequer no século XX, mas no século XIX, especialmente na obra de wittgenstein. nesse contexto, o que se busca é um distanciamento de formas explicativas dos fenômenos sócio-culturais em nome do que o próprio autor chama de “compreensão” dos mesmos, a partir da perspectiva aberta pelos hermeneutas – e aqui o trabalho desenvolvido por dilthey é fundamental. a grande questão aqui é o debate em torno do caráter das ciências humanas: devemos seguir o caminho das “ciências naturais” ou buscar um novo método para análise dos fenômenos sociais? nas ciências sociais responder a essa questão ficou mais fácil a partir da obra de clifford geertz. weber tinha uma perspectiva semelhante, mas no final das contas sua análise embora se iniciasse “compreensiva”, terminava num “objetivismo camuflado”.
2) as bases do “relativismo cultural” já estavam bem desenvolvidas em malinowski, desde da década de 20. o problema é que quase ninguém, especialmente pesquisadores de outras áreas, compreenda exatamente o que o termo significa. quando geertz escreveu “o anti-anti-relativismo”, ele não estava se posicionando contra o relativismo, mas ao embrutecimento do tratamento do conceito. pra ele, a questão “ser ou não ser relativista” é mal formulada. o chamado anti-relativismo soa como piada para o autor – daí as bases argumentativas do artigo (o texto pode ser encontrado também em “o saber local”, acho que publicado pela vozes).
3) sim, pelo menos em antropologia, não tem autor que não tenha sofrido duras críticas em relação às bases em que desenvolvia suas pesquisas. o gellner tem um trabalho interessante, mas o considero desnecessariamente radical em suas críticas. a sensação que ele me passa é que está o tempo inteiro querendo provar a inviabiliade do conhecimento da realidade social – uma espécie de sabotagem de tudo o que já se foi esrcito. como todo geertziano, acredito que embora seja impossível fazer uma cirurgia num ambiente totalmente asséptico, não siginifica que a gente deva fazê-lo numa vala. sermão para o padre? não, não conheço a obra citada, mas acredito que a correlação dos três temas deva render, ao menos, bons questionamentos.
4) paul rabinow tem tb importantes contribuições na chamada “antropologia da razão”. se não estou enganado ele tem um livro com este nome.